quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pause and Play




-Você é Alemã?

-Sou descendente de alemães.

O cara ao meu lado se apresentou. Um sotaque medonho.

-Sou árabe.

-Árabe mesmo? Nascido lá no Oriente?

-Sim.

Parecia perturbado. Eu só ouvindo e ele só torrando os judeus.

Fiquei um pouco contrariada e ele percebeu o meu desgosto. Pensava nos meus amigos judeus. Que são pessoas de bem.

Pause.

No musical da Evita Perón tem uma parte que diz assim: quem manda no governo é o sujeito que está atrás do presidente.

Play.

O árabe defendia muito a engenharia.

-Porque meu filho faz engenharia, porque engenharia e engenharia...

Pronunciava engenheria.

Que vontade de gritar: Pelo amor de Alá pára de falar de engenharia.

Logo desviou pra o lado da guerra.

-Os judeus querem o nosso petróleo. Os judeus mandam no presidente americano.

Pause.

Saí do ar. Viajei viajando. Quer dizer que a tal guerra é só mais um pega-pega entre judeus e árabes?

Play.

O velho amargurado manquejava de uma perna, carregava uma muleta. Descemos no mesmo ponto. Ele apoiou-se no meu braço e me acompanhou até o ponto de táxi. Nunca mais nos vimos.

Tá. E daí?

Sem graça. Mundo sem graça. É sempre a mesma história.

Lente de Contato




Alguns meses atrás decidi fazer aula de musculação. Só pra variar um pouco a natação. Antes de iniciar a puxação de ferro, porém, consultei uma médica nutróloga.

Pois bem, entre outras coisas ela me receitou um suplemento de proteínas. Saí do consultório, passei lá no mercado e passei a mão no dito cujo. Fui-me embora para o meu ap, liguei o rádio e sentei no sofá com o tal pote.

Pus-me a ler o rótulo como de costume.

Dizia lá:

L-Metionina tantos mg,

L-Cistina tantos mg,

L-Tirosina,

L-Triptófano,

L-Potter...

L-Potter?

Desliguei o rádio pra não me inconfundir.

Peguei um LP antigo e pousei a agulha sobre a faixa: BCAA. Novamente segurei o meu pote com as duas mãos. Lá dizia:

L-leucina

L-isoleucina

L-valina

Silêncio no toca-discos. E nova faixa na sequência:

L-fenilalalalalalalalalala

Ai, esses discos riscados. Dá uma vontade de jogar no lixo. Voltei a agulha e meus olhos no potão só ouvindo:

L-fenilalanina

Pronto. Aí liguei a TVzona. Trailer de filme. Abri o frigobar, peguei algo lá dentro, a primeira coisa que a minha mão apalpou. E pupila no pote:

L-taurina

Red Bull me deu asas e haja

L-carnitina

pra bater aquelas asas.

Uma hora depois eu caía exausta em cima do sofá. Dê-lhe

ácido glutâmico pra repôr.

Foi tanto que passei mal. Resolvi só na L-PrOLINA. Guti guti.

Bateram na porta.

Quem L-SERInA?

Uma enciclopédia toda sabichona pulou da prateleira na minha mão. Foi logo falando:

L-Lisina, a hidrólise de proteínas produz o isômero opticamente ativo pertencente à série L.

Entendi tudo. Já fazia uma década que eu não abria um livro de Química Orgânica.

Mão no frigobar. Pepsi na mesa. Hora do Lanche:

Hamburguer vai pepsina vem. Hamburguer vem pepsina vai.

Dona Enciclopédia veja só isso:

L-Arginina

E enzima, e enzima e,

Dona Enciclopédia deu cria:

L-Ornitina

Ela empinou o nariz:

Não falei?

Pensei "O que vai acontecer agora?"

Nisso comecei a crescer e crescer e crescer e crescer e encostei no teto. A enciclopédia se apavorou, bateu a porta da estante e se fechou lá dentro com medo que eu a esmagasse. Fechou os olhos e ficou só esperando eu explodir.

Hormônio do Crescimento, hein? Fermento!

Continuei crescendo, toquei nas nuvens e as afofei.

Cadê o meu sofá? Não tinha sofá. Então deitei na nuvenzinha mais branca de todas.

Seu arco-íris o que eu faço pra ficar normal?

Toma um gardenal.

Eu tô falando sério.

Astro Sol o que eu faço pra voltar ao tamanho normal?

Me dá um beijo.

Tá brincando que eu ia queimar a minha boca toda.

No meu desespero me agarrei com o primeiro objeto voador identificado. Espiei pela janela pra dentro da cabina. O piloto automático tomou um susto grande. Brecou aquele troço, o OVI girou, girou, girou e a força centrífuga me encolheu de novo. Que paradoxo!

Chegando em casa, L-Carnosina pra cabeça. A enciclopédia espraiada na prateleira me aguardava, olhão arregalado.

GABA agora, falei. E engoli minha cápsula de ácido gama-amino-butírico.

No meio daquele pout-pourri de neurotransmissores me acalmei. E voei e voei e voei por lugares desconhecidos e encantados procurando por um orelhão. E quando o encontrei ele não funcionava.

Tentei voltar e não achava o caminho de volta. A minha turma tinha ficado na entrada do mundo astral e eu comecei a ficar preocupada. Sem saber o que fazer me lembrei da enciclopédia: Isômero opticamente ativo.

Aminoácido. Eu precisava urgentemente de um pra me mostrar o caminho de volta.

Agarrei o primeiro cogumelo que avistei, o alcalóide fez efeito antes do aminoácido, e uma fauna desfilou em volta da minha cabeça.

A fauna era selvagem e eu era a caça. E fugindo dela alcancei a minha turma e esta quis me devorar.

E eu voei outra vez e os canibais me alcançaram e me comeram.

...