terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Teoria da Conspiração




Hoje o banco me avisou que vai me mandar um cartão com chip. Legal. Hoje depositei 100 reais no envelope na minha conta corrente.

Ultrapassado. Dinheiro em cédula é coisa arcaica. Ademais, dinheiro não devia ser concreto. Devia ser abstrato, onipresente e seguro. Como o pensamento. Ninguém toca, ninguém rouba e ele sempre está lá.

Só se for um... chip? Essa não. Satélites me vigiando 24 horas é big brother eterno. Vai chorando que se a moda pega... E antes que isso aconteça ou algo parecido eu espero me juntar àquela tribo indígena lá no meio da Amazônia que nunca viu o homem branco.

E se você ainda está soluçando pare por um minuto descanse e se console porque existe algo pior do que ter um chip implantado na mão ou no braço ou na perna. É ter um chip implantado dentro do cérebro. Já viu aqueles mapas neurológicos de atividade cerebral? Então. Não é possível alguém saber exatamente o que você está pensando mas é possível ter uma idéia, pelas zonas cerebrais ativadas. É pior que big brother, é pior que Orkut, é pior que bina, é pior que cartão corporativo. Quer saber? É o fim.

Portanto ser assaltado é uma liberade que nós temos hoje em dia. Do ladrão, infelizmente. Pensar pensamentos só nossos sem interferência, também é uma liberdade. Essa de todos. A não ser que o seu olho brilhe, daí eles vão descobrir que você está apaixonado.

Em tempos de dinheiro abstrato assalto assumiria outra nomenclatura: sequestro seguido de anestesia total e corrupção de cirurgião para o transplante de chip após adulteração de dados com falsificador hacker.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O Rabinho do Rabanete



Já viu rabinho de rabanete? É impressionante. É. Um simples rabinho.

Vou dizer por quê.

Eu estava fazendo uma salada de rabanete. A receita mandava pôr cebolinha e iogurte e rabanete. Então eu peguei a tábua de cortar e apanhei os rabanetes e a faca e pus-me a cortar os rabinhos dos rabanetes. Afinal, quem gosta de comer rabinho de rabanete? Hum, é algo inusitado comer rabinhos, não é?

Mas, porém, todavia, contudo, entretanto, quando eu levantei a faca pra cortar o primeiro rabinho - eram quatro rabanetes ao todo - o rabinho se mexeu e eu pude ouvir um gritinho de dor. Parecia pedir piedade. "Por favor não me corte, vai doer, vai sangrar e o rabanete vai morrer".

Eu estava diante de um fenômeno. Um rabanete que se comportava como rato. Quem sabe na outra encarnação ele foi um rato. É. Você duvida. Mas eu cheguei a cogitar essa hipótese. E esse pensamento me fez ter receio de pegar o rabanete. Ratos transmitem doenças, sabe como é...

Eu iria desvendar aquele fenômeno. Ah, ia. Sabe, sempre que eu não entendo alguma coisa eu fico pensativa, às vezes me deito na cama e fico refletindo. E não acho explicação rápida, 99 por cento das minhas tentativas. E nem sempre tenho tempo para continuar refletindo indefinidamente até encontrar a resposta. Outras vezes disponho de tempo, mas a mente cansa. Nos piores casos, as idéias se chocam, as peças não se encaixam, e o esforço mental me dá dor de cabeça. Então desisto e me levanto e, ou desisto ou deixo pra continuar a 'matutação' outra hora.

Quando o mistério é grande fico perturbada. Nem sempre conscientemente. Tenho pesadelos. E a angústia é grande. Muito grande. É como tentar resolver um problema de matemática daqueles bem difíceis. Só que frequentemente há um agravante: A falta de dados. Aí tenho que sair perguntando pra todos os fulaninhos que tem parte na história. E não é na hora que eu quero. É quando a oportunidade surge.

Se não faltam dados sobra ignorância sobre o assunto em questão. Daí corro pra os livros ou pra internet - a internet é uma benção.

A melhor coisa pra atacar um grande problema é desistir dele primeiro. É algo que me dá uma força incrível pra enfrentá-lo. Porque depois que eu desisti, não corro o risco de ficar arrasada se tudo der errado. Quero dizer, o que vier é lucro. Então, vamos lutar pra vir, não é? É uma maneira de fugir da sensação de fracasso. Sentimento devastador esse, consome as energias e detona a autoconfiança.

Voltando ao rabinho do rabanete. Enojada como eu estava do rato-rabanete - aí está uma ligação do reino animal com o vegetal que eu não tinha me dado conta - passei a picotear a cebolinha. E a cebolinha me fez arder os olhos e chorar. E chorar e chorar e chorar.

E enquanto eu chorava em cima da tábua de cortar legumes, ouvi um grito:

-O rabanete está fugindo.

E outro grito:

-A cebolinha vai te pic...

Aai! Gritei. A cebolinha não me picou, e o rabanete parou de se mexer.


Ah, faltou a explicação do fenômeno. Não se desespere. A resposta sempre vem, mesmo que você tenha que se angustiar por ela.


domingo, 2 de novembro de 2008

A Origem do Vampiro




Lá está a mocinha no quintal da casa caminhando inocentemente quando aparece do nada o vampiro e CRAW! O olho do telespectador "vê" nesse momento em fração de segundo a imagem do conde. Uma mensagem subliminar. Posteriormente ao vê-lo de fato seu cérebro já sabe quem é o vampiro.

Todo vampiro teve uma história íntima de relacionamento com o sangue na infância.

Certa vez entrevistei um vampiro, não tão famoso quanto o Conde, mas muito mais ativo do que ele.

Recebeu-me em sua asquerosa residência onde fui convidada a sentar em um sofá preto de couro. Uma doméstica serviu-me algo da cor do vinho tinto. Desconfiei.

"Acidentalmente" derrubei a mistura fina no tapete e, oh! que horror, o líquido em poucos segundos coagulou. Porque não coagulara na taça fiz promessa de jamais contar a ninguém.

O vampiro, agora já falecido, contou-me que na sua melancólica infância na fazenda do seu avô foi obrigado por este a capinar sob o sol causticante. Os pais do menino tinham morrido de uma peste qualquer. E, não obstante o chapéu de palhas cobrindo-lhe a cabeça, o calor dilatava suas artérias provocando assim uma hemorragia nasal, que descia pela sua garaganta e atravessava o seu esôfago indo atingir o seu estômago e ali era digerida.

Na sua boca o gosto peculiar do sangue vivo foi acostumando e pervertendo o seu paladar pouco a pouco. Com o passar dos dias foi tomando gosto pelo sabor quente do seu próprio fluido vital.

Um dia seu avô lhe perguntou:

- Por que estás tão pálido meu filho? Viste alguma assombração?

- Não meu avô, eu mesmo sou a assombração - ele não teve coragem de contar a verdade ao seu avô. Temia-o por demais.

Claramente o vampirinho apresentava sintomas de anemia. Porém não sabia. Apenas sentia-se fraco, muito fraco, cada dia mais fraco. Pior: Tão viciado estava naquele néctar morno, que descendo pelo seu interior aquecia a sua alma abandonada pela sorte, passou a provocar o sangue, com cortes de canivete, às escondidas.

A anemia minava-lhe o vigor. Já não conseguia parar em pé debaixo do Sol mais do que uma hora. Aquilo foi alimentando um pavor de ser descoberto pelo temido avô. Escondia-se na estrebaria durante o período de trabalho para não ser descoberto vagueando a esmo pelo campo.

Em meio aos cavalos chorava copiosamente o seu destino a ponto de os equinos deixarem escapar uma lágrima de comoção. Passados alguns dias se deu conta da força de seus companheiros que passavam noite e dia em pé sem se queixar de fraqueza ou cansaço. Foi quando teve uma idéia, uma terrível idéia. Sua condição mórbida estava o transformando em uma criatura disposta a qualquer atrocidade para sobreviver.

Alguns meses depois, estando na cozinha do casarão, ouviu seu avô comentar com um empregado:

- Perdi um cavalo esta semana. Quero que tu descubras o motivo. Ele não estava sequer doente. Ao ouvir isto o menino entrou na sala onde os dois conversavam e explicou com a autoridade de quem fala a verdade:

- Os morcegos atacaram o seu xodó esta noite vovô. Pude escutar do meu quarto ele se debatendo.

- Eu sempre tive receio daqueles morcegos, mas não pensei que fossem capazes de tanto - exclamou o avô crédulo e soltou um suspiro prolongado.

O menino calou-se satisfeito. Acabava de obter a sua primeira vitória sobre aquele velho sem coração e sem noção. Agora estava a caminho da libertação. Não dependeria mais dele. Apenas dos cavalos.

Transcorrido um breve momento de silêncio paralisante seu avô levantou novamente a cabeça e fitou a infeliz descendência, fazendo viva observação:

- Como estás corado meu filho.

Nos anos que se seguiram aquele fazendeiro foi contemplado com a morte de 12 cavalos puro sangue. Sua mente o atormentava em pesadelos diários. Não conseguia entender a razão de tamanho infortúnio. O fato se espalhara pela vizinhança.

O menino se tornou um rapaz forte e robusto. Apaixonou-se por uma amiga de cavalgadas. Os dois enamoraram-se e encontravam-se secretamente por causa dos pais dela pois ela só tinha 14 anos.

Foi ela mesma quem se ofereceu:

- Por que tu não mordes o meu pescoço ao invés de passar o canivete nos inocentes cavalos?

Ele parou, pensou e consentiu.

Que garota era essa? Queria dar ao seu amado não somente a sua carne mas também o seu sangue. Tristes dias se passaram e enfim aquela donzela renegada entregou a sua vida. Morrera de amor. Louco amor. Principiante amor.

Daí em diante, o adulto vampiro trocou os cavalos pelas mulheres. As damas da redondeza temiam sair na rua à noite. Seus relatos incríveis impressionavam, suas marcas no pescoço testemunhavam de um ataque, contudo, mesmo com toda a evidência as pessoas se recusavam a acreditar no que elas diziam.

Porque era algo mais do que bizarro, era algo impossível de acontecer.

Incredulidade. Ah! desgraçada. Graças a ela o vampiro levou à frente o seu vício medonho sem nada que o impedisse. Ninguém jamais descobriu a sua identidade secreta:

- Eu mesmo sou a assombração.


quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pause and Play




-Você é Alemã?

-Sou descendente de alemães.

O cara ao meu lado se apresentou. Um sotaque medonho.

-Sou árabe.

-Árabe mesmo? Nascido lá no Oriente?

-Sim.

Parecia perturbado. Eu só ouvindo e ele só torrando os judeus.

Fiquei um pouco contrariada e ele percebeu o meu desgosto. Pensava nos meus amigos judeus. Que são pessoas de bem.

Pause.

No musical da Evita Perón tem uma parte que diz assim: quem manda no governo é o sujeito que está atrás do presidente.

Play.

O árabe defendia muito a engenharia.

-Porque meu filho faz engenharia, porque engenharia e engenharia...

Pronunciava engenheria.

Que vontade de gritar: Pelo amor de Alá pára de falar de engenharia.

Logo desviou pra o lado da guerra.

-Os judeus querem o nosso petróleo. Os judeus mandam no presidente americano.

Pause.

Saí do ar. Viajei viajando. Quer dizer que a tal guerra é só mais um pega-pega entre judeus e árabes?

Play.

O velho amargurado manquejava de uma perna, carregava uma muleta. Descemos no mesmo ponto. Ele apoiou-se no meu braço e me acompanhou até o ponto de táxi. Nunca mais nos vimos.

Tá. E daí?

Sem graça. Mundo sem graça. É sempre a mesma história.

Lente de Contato




Alguns meses atrás decidi fazer aula de musculação. Só pra variar um pouco a natação. Antes de iniciar a puxação de ferro, porém, consultei uma médica nutróloga.

Pois bem, entre outras coisas ela me receitou um suplemento de proteínas. Saí do consultório, passei lá no mercado e passei a mão no dito cujo. Fui-me embora para o meu ap, liguei o rádio e sentei no sofá com o tal pote.

Pus-me a ler o rótulo como de costume.

Dizia lá:

L-Metionina tantos mg,

L-Cistina tantos mg,

L-Tirosina,

L-Triptófano,

L-Potter...

L-Potter?

Desliguei o rádio pra não me inconfundir.

Peguei um LP antigo e pousei a agulha sobre a faixa: BCAA. Novamente segurei o meu pote com as duas mãos. Lá dizia:

L-leucina

L-isoleucina

L-valina

Silêncio no toca-discos. E nova faixa na sequência:

L-fenilalalalalalalalalala

Ai, esses discos riscados. Dá uma vontade de jogar no lixo. Voltei a agulha e meus olhos no potão só ouvindo:

L-fenilalanina

Pronto. Aí liguei a TVzona. Trailer de filme. Abri o frigobar, peguei algo lá dentro, a primeira coisa que a minha mão apalpou. E pupila no pote:

L-taurina

Red Bull me deu asas e haja

L-carnitina

pra bater aquelas asas.

Uma hora depois eu caía exausta em cima do sofá. Dê-lhe

ácido glutâmico pra repôr.

Foi tanto que passei mal. Resolvi só na L-PrOLINA. Guti guti.

Bateram na porta.

Quem L-SERInA?

Uma enciclopédia toda sabichona pulou da prateleira na minha mão. Foi logo falando:

L-Lisina, a hidrólise de proteínas produz o isômero opticamente ativo pertencente à série L.

Entendi tudo. Já fazia uma década que eu não abria um livro de Química Orgânica.

Mão no frigobar. Pepsi na mesa. Hora do Lanche:

Hamburguer vai pepsina vem. Hamburguer vem pepsina vai.

Dona Enciclopédia veja só isso:

L-Arginina

E enzima, e enzima e,

Dona Enciclopédia deu cria:

L-Ornitina

Ela empinou o nariz:

Não falei?

Pensei "O que vai acontecer agora?"

Nisso comecei a crescer e crescer e crescer e crescer e encostei no teto. A enciclopédia se apavorou, bateu a porta da estante e se fechou lá dentro com medo que eu a esmagasse. Fechou os olhos e ficou só esperando eu explodir.

Hormônio do Crescimento, hein? Fermento!

Continuei crescendo, toquei nas nuvens e as afofei.

Cadê o meu sofá? Não tinha sofá. Então deitei na nuvenzinha mais branca de todas.

Seu arco-íris o que eu faço pra ficar normal?

Toma um gardenal.

Eu tô falando sério.

Astro Sol o que eu faço pra voltar ao tamanho normal?

Me dá um beijo.

Tá brincando que eu ia queimar a minha boca toda.

No meu desespero me agarrei com o primeiro objeto voador identificado. Espiei pela janela pra dentro da cabina. O piloto automático tomou um susto grande. Brecou aquele troço, o OVI girou, girou, girou e a força centrífuga me encolheu de novo. Que paradoxo!

Chegando em casa, L-Carnosina pra cabeça. A enciclopédia espraiada na prateleira me aguardava, olhão arregalado.

GABA agora, falei. E engoli minha cápsula de ácido gama-amino-butírico.

No meio daquele pout-pourri de neurotransmissores me acalmei. E voei e voei e voei por lugares desconhecidos e encantados procurando por um orelhão. E quando o encontrei ele não funcionava.

Tentei voltar e não achava o caminho de volta. A minha turma tinha ficado na entrada do mundo astral e eu comecei a ficar preocupada. Sem saber o que fazer me lembrei da enciclopédia: Isômero opticamente ativo.

Aminoácido. Eu precisava urgentemente de um pra me mostrar o caminho de volta.

Agarrei o primeiro cogumelo que avistei, o alcalóide fez efeito antes do aminoácido, e uma fauna desfilou em volta da minha cabeça.

A fauna era selvagem e eu era a caça. E fugindo dela alcancei a minha turma e esta quis me devorar.

E eu voei outra vez e os canibais me alcançaram e me comeram.

...



sábado, 16 de agosto de 2008

Para comunicólogo ver



- Mariiia joga a chave.

- Eu não a estou achando meu bem.

- E agora Maria? Eu perdi a minha chave.

- Entra pelo túnel das telecomunicações.

- Do que tu estás a falar Maria?

- Este mesmo canal por onde entram as ondas eletromagnéticas.

- Ora Maria. Estás a me gozar.

- Não estou. Tu que estás a duvidar.

- Se tu me disseres onde se localiza a porta desse túnel, eu entrarei.

- Pega uma escada, uma bem alta que alcance as nuvens, onde se propagam as ondas eletromagnéticas, e pega carona com elas. Elas te mostrarão a porta.

- Mas Maria, eles são bem mais magrinhas do que eu, a porta deve ser um tanto estreita, e eu não conseguirei passar através dela.

- Meu bem tu conseguirás. É só o que posso te dizer.

- Até logo Maria. Aguarde-me um instante.

- Como chegaste rápido José.

- Tu não sabes a quantas por hora viajam as ondas eletromagnéticas?

- Eu já ia me esquecendo. Então como foi teu dia?

- Tal como saiu no jornal Maria.

- Tu não saíste no jornal José.

- Todas as notícias estão atrás do jornal.

- És tu que estás a me gozar, porque quando viro o jornal para trás a fim de ler sobre o teu dia, tuas notícias se movem para trás dele, e assim nunca consigo alcançá-las, como um cachorro que tenta morder o próprio rabo.

- Deixa isso pra lá Maria. Permita-me navegar agora nessa tua onda eletromagnética. Larga dessa pia.

- O celular está tocando. Não vais atendê-lo?

- Não estou de plantão nesta noite Maria. Venha logo se não vou navegar nas ondas da televisão.

- Já estou indo. Não vá me trair com a TV.

- Mas enquanto tu te demoras eu me distraio com o meu 3G.

- Estás me traindo com a Internet?

- Não Maria. Tu és muito desconfiada.

- Decerto sou. Está aqui a tua chave.

- Tu me enganaste Maria?

- Eu acabei de encontrá-la no bolso do teu casaco.

- Não creio que ela estivesse lá. Eu a procurei em todos os cantos.

- Tu desconfias de mim?

- Não só desconfio como acho que tu estás me traindo.

- Vamos acabar já com esse mal-entendido.

- De que maneira Maria? Eu simplesmente devo pôr de lado a minha tiara de cornos e ajeitar a minha cabeleira?

- Tu estás delirando.

- Pois que esteja. É que não consigo mais confiar em ti desde que tu me enganaste. Adeus Maria.

- Não meu José. O que tu vais fazer é uma loucura. Há de haver uma explicação.

- E a quem tu vais imputar a culpa?

- Foram as ondas, só pode, foram elas que colocaram as chaves no bolso do teu casaco assim que tu chegaste. Elas a tinham escondido certamente.

- Teremos que conversar sério com elas.

- Por favor. Não vá expulsá-las. São elas que nos comunicam com o mundo. Sem elas voltaríamos à idade da pedra.

- Venha cá Maria. Perdoa-me essa desconfiança.

- Oh meu José. Por pouco tu me deixavas. Vamos fazer um voto: Nunca nos deixaremos, mesmo que as más ondas infernizem o nosso casamento.

- Sim Maria. Olha ali atrás da cortina. Elas estão rindo de nós.

- É que a falta de comunicação acaba com qualquer relacionamento. Elas estão rindo da tua precipitação.

- Ah Maria. É duro ter que te dar a razão.

- Vês como é importante a comunicação?

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Nostalgia de Ex-Crianças



-Eu gostava do Tom e Jerry

-E eu gostava do pica-pau

-Eu assistia todo dia o Batman à 1:30. Várias vezes cheguei atrasada na aula por causa dele.

-Eu adorava Jetsons, não tá mais passando né?

-Só na NET.

-Eu adorava a família de pedra. Tive uma boneca igual à Pedrita.

-Eu era fã do Scooby-Doo. E do Shmoo, um bichinho branco que virava qualquer coisa que ele quisesse.

-Ai, eu gostava do Van Damme.

-E eu da Mulher Maravilha.

-O homem-aranha eu ainda assisto.

-Fica quieto criança grande.

-Eu brincava com as minhas amigas de Penélope Charmosa. A gente se vestia toda de rosa.

-Não era de Pantera cor-de-rosa?

-Eu não perdia um Ducktales, os caçadores de aventuras. E eu acreditava que era tudo verdade.

-Eu morria de medo daqueles monstrinhos dos ursos carinhosos.

-Eu me apaixonei pelo He-Man.

-Isso não é nada. Eu beijei a She-Ha.

-Beijou a tela da TV, seu bobo.

-Eu me casei com a Jen, quer dizer, com uma das identidades secretas dela.

-Só tu mesmo.

-Dá licença que está na hora do meu desenho.

-Coitado. Pegou a Síndrome de Peter Pan.

-É que o papai smurf aqui é coruja e vai acompanhar o filhão.

-Então eu vou buscar a minha Branca de Neve no colégio.

-Até mais pessoal. It´s all folks!


A Coruja anãzinha



Ganhei uma coruja de pelúcia de uma amigo. Ele me mandou lá do Rio de Janeiro, um pouco pra cima, Paty dos Alferes.

Mandou um bilhete junto explicando: A coruja é o símbolo da sabedoria.

Não me considero digna de tal presente. Não imaginam o que eu faria se duas mulheres viessem a mim clamando em alta voz: Esse filho é meu. Só Salomão mesmo pra mandar cortar ao meio e dar metade pra cada uma. E a história conta que a mãe que bradou "não mata" levou o filho.

Fosse eu solicitada a tomar uma decisão justa e rápida mandava chamar o Conselho Tutelar. Oras, eles estão acostumados a lidar com dramas infantis (em todos os sentidos)todos os dias.

O fato é que, dizem os eruditos, a partilha era a decisão comumente tomada no caso de haver disputa de quaisquer bens. Salomão apenas teria aplicado a regra ordinária.

Voltando à coruja. Coloquei-a no canto da minha cama, junto à parede. Ela permaneceu lá por um bom tempo, dormindo de dia e me vigiando à noite.

Mas eu tinha um quê contra ela. Achava-a horrível, baixinha, achatada. Calculei que tivessem errado a sua proporção. Um belo dia tive plena consciência dessa desafeição pela feiosa vigia noturna. Movida pelo desejo de confirmar a minha hipótese ou refutá-la para sempre abri uma enciclopédia, a Conhecer, e consultei o verbete coruja.

Dizia lá: A coruja tem 21 cm. Em seguida guardei o volume de volta na estante e peguei a régua, estas de estudante. Tirei a anãzinha do canto da cama e a medi: 21 cm. Por algum tempo me diverti mostrando a coincidência às pessoas que vinham em nossa casa.

Acho difícil definir sabedoria. Nem mesmo o dicionário possui uma definição satisfatória. Há pelo menos uns 10 significados diferentes para este verbete.

Sócrates dá uma luz: Só há um bem que é a sabedoria e um mal que é a ignorância.

Então a sabedoria opõe-se à ignorância. Quer dizer, é algum tipo de conhecimento.
É um bom início.

Quero ressaltar que é muito popular uma falsa concepção de sabedoria, aquela em que o sujeito muito graduado, cheio de títulos é tido com uma pessoa sábia.

Não é a esse tipo de conhecimento que Sócrates se refere. Não é sequer necessário frequentar uma universidade para ter sabedoria. Pior, há casos de doutores, pesquisadores, verdadeiras estrelas e astros intelectuais que cometem enormes desatinos no que se refere à vida pessoal. Daí perguntam. Como pode? Não é um doutor?

É que conhecimento técnico não é sabedoria. Tampouco inteligência. Esta última mede apenas a capacidade de processar e armazenar conhecimentos em nossa sofisticada CPU chamada cérebro.

Acredito que a sabedoria, essa ferramenta tão preciosa, completamente indispensável na obtenção do sucesso e da felicidade é a "recém descoberta" Inteligência Emocional.



Previsão para a Olimpíada de 2012



O Comitê Olímpico Internacional agregará uma nova modalidade esportiva: o vôo. Nada surpreendente. É que devido ao aumento de moléculas poluidoras no ar do Rio de Janeiro, a densidade do mesmo se aproximará um pouco da aquática. Resumindo, o vôo olímpico será o nado aéreo, que é o próprio nado, porém dificultado pela menor densidade do meio e pelo medo de altura. Por falar nisso 1000 pés será uma boa altura para a execução do nado aéreo.


A Comissão Julgadora fará banca em um dirigível. A Tribuna de Imprensa marcará presença (como sempre) em monomotores (com direito a filmar a prova de arco e flecha lá de cima). E a população ordinária pagará ingresso para ver essa acirradíssima disputa de dentro do Paralelepípedo de Ar (um objeto voador identificado). Este IFO será fabricado pela Air France e controlado por 12 computadores de bordo infalíveis e não-sujeitos a bug (que o último bug não existe todo mundo sabe mas este será uma excessão).


É mister avisar que o preço do ingresso será bastante caro pois incluirá em seu valor o seguro de vida. Também é de bom tom informar aos desavisados para que não levem laptops ou celulares, claro. Isso porque em caso de naufrágio, digo, queda livre, diminuirá potencialmente o prejuízo.


Nos 4 anos que antecederão a Olimpíada de 2012 os EUA produzirão um novo fenômeno a quem chamarão de o homem-pássaro. Com suas enormes e flexíveis mãos de 60,3 cm ele se moverá no ar rarefeito como um bimotor. Este novo recordista mundial disputará 12 medalhas de ouro, uma ousadia nunca dantes vista. Além dos dois motores este atleta será dotado de braços muito corpulentos, muito mais que o próprio corpo, o qual terá a dimensão de uma perna. Só assim ele poderá nadar, digo, voar, acima da velocidade do som. Esta jóia do atletismo será o primeiro, único e último homem super-sônico. Só lhe faltarão mesmo as asas para que ele seja considerado um homem evoluído a ave. Ah, o principal, ia me esquecendo de dizer. Ele não acumulará ácido lático. Portanto, poderá voar ininterruptamente, ou, pelo menos, enquanto tiver energia.


Essa maravilha da aerodinâmica contará ainda com um traje especial, o Mach 12, uma carapaça com bico fino capaz de levantar-se na arrancada, que o permitirá desenvolver uma velocidade igual a 12 vezes àquela do som, isto é, 12*340 m/s. Tal indumentária também será a prova de aviador americano pois será feita de um material que repelirá pilotos inexperientes e terá dispositivos estabilizadores capazes de manter a posição do corpo até mesmo na ocorrência de ciclones, furacões, tornados, tsunamis e suas variantes.


Outro feito inédito: Eles o testarão sobre o Triângulo das Bermudas, para ver até onde vai a sua habilidade, pois se porventura for derrubado sairá nadando e estará a salvo; e é justamente aí que ele baterá o seu maior auto-recorde. Isso porque terá que fugir a nado daqueles monstros marinhos que engolem esquadras e esquadrilhas inteiras sem sequer arrotar.


Além dessa nova modalidade esportiva acrescentarão também, pelos mesmos motivos, o vôo sincronizado e as acrobacias aéreas, estas últimas, semelhantes às da FAB no sete de setembro, serão a grande novidade, pois não correrão o risco de sofrer qualquer acidente. Agora uma predição que alegrará os brasileiros: o Brasil será o grande campeão no vôo sincronizado para delírio dos espectadores e torcedores, que relaxarão e gozarão nas suas casas e no Paralelepípedo de Ar.


Em suma, a Olimpíada de 2012 deixará todos embasbacados, apalermados, paralisados, boquiabertas, estupefatos, muitos morrerão do coração (pois que morrem mais pessoas por causa de notícias boas do que ruins) e os que sobreviverem ficarão para sempre impressionados. Em todos os recantos deste Planeta a torcida coruja não dormirá jamais mas estará 24 horas com os olhos e os ouvidos plugados na TV digital, no rádio do carro, na internet banda larga e nos jornais e revistas flutuantes, os quais poderão ser lidos até dentro da banheira de aeromassagem nos hotéis de luxo (porque só neles haverá essa modernidade do conforto), sem precisar segurar com as mãos.


As pessoas passarão o tempo inteiro trocando comentários admirados pelo celular, pelo BlueTooth, pelo 3G, pelo e-mail, pelo scrap, pelo blog; gravarão as imagens fantásticas nos DVD´s, nos Blu-Rays, nos MP4´s através de câmeras fotográficas e filmadoras digitais; não darão descanso nenhum segundo para os jornalistas, para os jornaleiros, e os redatores, também os editores, os revisores, os tradutores, os repórteres, os locutores, os assessores de imprensa, enfim, os comunicadores em geral.


As paredes, e muros e estradas encher-se-ão de posters e outdoors vendendo artigos esportivos com as imagens dos aero-atletas (cabe observar que o super-homem não se assemelhará nem de longe ao homem-pássaro no quesito velocidade ultrasônica, mas ficará devendo e passará vergonha). Os publicitários desprezarão toda a gentalha inclusive os melhores tenistas do mundo como seus garotos-propaganda, também os Ronaldinhos da vida e as meninas do vôlei.


Porém, o final dessa odisséia olimpiadística trará consigo a desilusão, à volta ao mundo imaginário, digo, ao mundo real (já dizia um amigo filósofo que o mundo real é o mundo imaginário e o mundo imaginário é o mundo real ) e a censura ao elogio sem crítica. Isto porque os arapongas e demais agentes secretos passarão os 12 dias das provas aéreas conversando em códigos Morse, criptografando escutas telefônicas, recolhendo bilhetes e documentos oficiais e lendo livros especializados sobre o assunto do momento: o esporte aéreo.


O desfecho dessa investigação será precedido por uma onda de pixações reveladoras: O homem-pássaro é uma farsa. Por fim será apresentada toda a verdade: o nado aéreo, e o homem-pássaro, e o vôo sincronizado, e as acrobacias aéreas nunca existiram. Estas ditas modalidades esportivas foram apenas encenações feitas com cabos de aço (à la Tigre e o Dragão, ô filme bom esse assisti várias vezes) apagados digitalmente em Hollywood. E finalmente as luzes se acenderão e o lanterninha abrirá as portas de saída do cinema.



quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O Vocalista da Banda_4



- Mariana eu vou ao banheiro. Já volto.

- Eu vou junto. Me espera.

- Vai me largar justo agora?

- Aproveita pra fumar o teu back.

- E ai? Gostou dele?

- Mais ou menos.

- Como assim?

- Ele não tem classe.

- Mas tem manha.

- Será que ele chama todas de gatinha?

- Não. Só você.

- Ai. Eu me esqueci de perguntar o nome dele.

- Pergunta agora.

- Cê viu aquela tatoo que ele tem no braço?

- O que tem ela?

- É assustadora.

- É só tinta. Não vai te morder.

- Eu sei que não vai. Dããã.

- Qual é o problema?

- Dá impressão que o cara é marginal.

- Nada a ver.

- Até que ele é bonitinho.

- Vai fundo então.

- Vamos voltar antes que o maconha desista de esperar.

- Pô gatinha. Foi fabricar papel no WC?

- Qual é o teu nome?

- Pode me chamar de Tesla.

- Diferente.

- Por que você fica olhando para o meu Rothweiller?

- Ele me assusta.

- Cê quiser eu ponho um pano.

- Pano?

- Uma camiseta com manga.

- Não esquenta.

- Boa essa banda.

Tesla fica nervoso.

- Cê tá passando mal?

- Tenho que ir nessa.

- O que aconteceu? Não entendi nada.

- Ele tá conversando com uma moça. E tá beijando ela.

- Agora eu vou cruzar a perna pra o lado direito...


O Vocalista da Banda_3



- Mas eu sou tua melhor amiga. Tenho direito de saber.

- Por que você não chega no vocalista?

- Como? Ele não me conhece?

- Sei lá. Cruza as pernas e depois descruza; cruza e depois descruza; até ele se ligar, ahn?

- Vou tentar. Primeiro pra que lado?

- Tenta a esquerda.

- Tá. E agora?

- Espera meio minuto, descruza e depois cruza pra o outro lado.

- Vou pedir uma bebida. Garçon!

- Já deu meio minuto.

- Foi. Ele tá olhando?

- Ele não, mas o carinha da maconha tá.

- Essa não!

- Sua boba. Dá uma chance pra ele.

- Tá brincando.

- Ele tá vindo aqui. Se prepara.

- O nome da gatinha é Viviane?

- Não. Mariana.

- Sensacional. Essa cadeira aqui tava me esperando.

- Cê quer sentar pode sentar, mas não acende baseado na minha mesa.

- Vai dizer que a gata não curte um back?

- Só de longe.


O Vocalista da Banda_2



- Tu é viciada?

- Não. Só curto assim de longe. Não acendo um.

- Mas eu acendo. Vou buscar um agorinha. Espera um minuto.

- Agora que deu. Ela vai fumar debaixo do meu nariz.

- Eu fumo maconha desde os 15 anos. Aprendi com o meu namorado.

- Quem? O paixonite aguda?

- Claro que não, né? Eu não tô casada com ele.

- Cof, cof. Cê me dá licença que eu preciso fazer uma ligação. Já volto.

Dez minutos depois, olhando no relógio:

- Cadê a Mariana que não volta nunca?

- Voltei.

- Até que enfim. Pensei que ia me largar na mão.

- Cê ainda tá fumando essa porcaria?

- Essa eu não entendi. Cê não disse que tinha vindo sentar pra cá porque...

- De longe entendeu? Só de longe.

- Tá eu apago. Podia ter falado antes.

- Vamos sair daqui. Você poluiu todo o nosso ar.

- Vamos pra onde?

- Pra onde a gente estava antes.

- Indecisa.

- Então me convida pra festa, viu? Não esquece.

- Que festa?

- Cê não vai casar com o paixonite aguda?

- Ele não me pediu em casamento.

- E dai?

- Cê tá achando que eu vô pedir a mão dele?

- E esse papo de meu macho? Ele é só teu mesmo?

- Cê tá invadindo a minha vida particular.


O Vocalista da Banda_1



No meio da festa:

- Vamos sentar ali naquele banco?

- Por quê? Tá bom aqui.

- É que ali fica mais perto da banda. Aqui não dá pra ouvir direito.

- O quê? Fala mais alto que tem muito barulho.

- É que eu quero ver o vocalista de perto.

- Nem é tão bonito assim.

- Fala sério. Cê tá querendo me tirar do páreo pra disputar o bonitão sozinha.

- Ih, minha filha. Se liga. Eu já tô numa e cara é sério, viu?

- O vocalista também é sério. Olha a cara dele.

- Cara de bad boy traçador de fã ingênua.

- Cê tá me ofendendo.

- Tá bom. Cara de Aladin apaixonado.

- Eu vi você olhando pra ele sua fingida.

- Olhei pra guitarra dele.

- Cê gosta de sair com guitarra, eh?

- Prefiro sair com a bateria. Tem uma porção de pauzinhos.

- Cê curte japonês?

- Curto o meu homem. O meu macho.

- Isso é doença?

- O que cê tá insinuando?

- Paixonite aguda.

- Pode ser, mas pelo menos eu sei amar. Você só sabe ciscar.

- Não força. Pra falar a verdade eu vim sentar aqui pra ficar mais perto daqueles caras que tão fumando maconha.


Sobre a Decência e o Recato



O sujeito emparelhou o carro com a minha bicicleta e mandou:

- Está muito indecente esta tua calça.

- É assim que os homens gostam - retruquei cheia de razão de dentro da calça de lycra preta.

Era o regional de desbravadores - bem casado ele.

- Mas o homem prefere a semi-nudez que é pra ficar imaginando o que tem debaixo.

- Ahn.

- Não pode sair mostrando tudo que perde a graça.

- Então vou por o quê?

- Bota uma mini-saia semi-transparente.

Eu teria feito um comentário se ele não tivesse arrancado o carro em seguida perante os meus olhos arregalados


* * *

A preceptora mais séria entrou no saguão do dormitório justo no momento em que eu mostrava a maquiagem da Natura para as gurias. Chegou um pouco mais perto e pediu para ver um batom. Abri uma caixinha aleatoriamente e de lá saiu um batom vermelho vivo. Daqueles mais indiscretos, mais provocantes, mais proibidos. Daqueles que as antigas preceptoras mandavam de volta para o dormitório se pegassem uma desavisada usando.


Pensei: - Ferrou. Agora ela vai me expulsar daqui.
Tentei consertar a situação depressa; abri as outras caixinhas de batom e fui logo falando: - Tem outros mais discretinhos aqui se tu quiser.
Ela fez uma cara de decepção que eu queria ter fotografado.

E chiou: - Não. Mas eu gosto é daquele ali mesmo.

Ora, veja. Não se fazem mais preceptoras como antigamente.



Aurora-Gerúndio Multicor



Um clarão amarelo-alaranjado atrás de uma gaze-algodão do lado oriente;

Urubus preto-rapina cirandeando poucos centímetros abaixo de nuvens claro-tempestade;

O morro ao fundo coberto de vegetação azul-reflexo me daltonizando;

Os bicicleteiros saindo para o trabalho jeans-vestidos, aro 26 girando miçangas coloridas;

Uma minhoca serpenteando na terra preto-marrom do canteiro recém revolvido;

O céu pintando-se de aquarela cinza-marinho sobre tela branco-prata;

A vizinha xingando o cachorro bege-escuro: - Ô bichinho que me pica!

Os lençóis lilás-floreado dançando de mãos dadas com as cordas-varais azul-catenária;

A moto-serra metal-Bosch do jardineiro rosnando para o capim verde-seco;

A folhagem verde-vibrante oscilando na indecisão do vento transparente-veloz;

Um pingo de chuva cor-de-mancha-papel interrompe estes versos.

Raízes Taquara



No setor 28 da primeira seção do Cemitério Municipal de Taquara, no epitáfio imediatamente à esquerda do corredor lê-se:

IN FRIEDEN RUHEN HIER

JOSEPH LEITTERSTORF

GEB. 21.5.1829
GEST. 12.1.1901

ANNA MARIA LEITTERSTORF
GEB. SCHIMITT

GEB. 22.6.1837
GEST. 15.7.1911

SIE MÖGEN SANFT SCHLAFEN! ;

e logo à direita:

HIER RUHT IN FRIEDEN

JULIUS LEITTERSTORF
GEB. GALLI

GEB. 25.2.1859
GEST. 20.4.1914.


Julius Leitterstorf, nascido Galli, foi adotado pelo casal Joseph e Anna Maria Leitterstorf, e por isso leva esse sobrenome. Além disso há evidências de que Julius era casado com Carolina, nascida Kautzmann. No entanto o nome da sua cônjuge não consta no epitáfio, apenas a foto. A história em questão gira em torno das esculturas em mármore de carrara que adornam os respectivos jazigos. À esquerda vê-se a escultura de uma mulher cuja cabeça é adornada por um véu e cujas mãos seguram uma coroa. À direita uma escultura em forma de mulher segura uma palma apontando para baixo. Ambas esculturas encontram-se viradas para dentro do corredor, ou seja, aparentemente elas estão de costas uma para a outra. Aí está.


Há uma antiga lenda em Taquara que ouvi da boca de familiares que por sua vez ouviram da boca da minha avó Martha Schuck Gonzalez, a respeito dessas obras de arte. Minha avó contava de duas mulheres as quais teriam sido inimigas e por isso teriam pedido que fizessem as esculturas delas e colocassem de costas como elas estão hoje. Aquilo significaria: INIMIGAS NA VIDA E NA MORTE! Outra versão que ouvi dos habitantes de Taquara conta que haveria uma intriga entre os dois casais. No necrotério a Sra. Marlene, funcionária antiga, relatou o que ela ouviu nos corredores do Cemitério: as duas mulheres, nora e sogra, teriam se apaixonado por um mesmo padre.


Tendo pesquisado no Arquivo Histórico do RS fui encaminhada ao Dr. Arnaldo Walter Doberstein, acadêmico da PUC-RS e historiador especialista em arte funerária. Este me explicou que a palma apontando para baixo significa morte, e que, mais geralmente, qualquer objeto apontando para baixo tem esse significado. O contrário, isto é, apontando para cima simboliza vida. Também a mulher remete à Morte pois esta última era considerada sedutora. Daí a predominância de 'santas' nos cemitérios. Com relação à lenda ele sugeriu tratar-se, provavelmente, de trânsito alegórico. Tal definição é usada por ele para caracterizar um fato muito comum às esculturas funerárias: com o passar dos anos, as pessoas atribuíam à elas um significado diferente daquele proposto originalmente. É uma hipótese apenas, que ele formulou com os dados que lhe forneci, mas serve no mínimo para explicar a existência de mais de uma versão para a história mencionada acima.


Em um de seus livros o Dr. Doberstein conta que depois da primeira Guerra Mundial declinou o costume social de se ornamentar profusamente as fachadas. Para compensar essa perda outras possibilidades se abriram no campo de trabalho dos escultores. Uma delas foi na ornamentação de mausoléus. Desde a virada do século vinha se propagando entre as elites gaúchas o hábito de encomendar figuras ornamentais para os jazigos familiares. A maior parte delas simbolizavam conceitos religiosos como a Fé, Esperança, Caridade, Justiça Divina, Juízo Final e Ressurreição. Algumas correspondem a sentimentos humanos diante da Morte como a Dor consolando-se na Fé, a Resignação, a Saudade e o Luto. Outras biografavam aspectos da vida do morto como suas virtudes, atividades e preferências.


Clareada a questão só nos resta deixar os falecidos descansarem em paz. Este era o desejo deles e também o epitáfio à esquerda:

EM PAZ DESCANSAM AQUI

JOSEPH LEITTERSTORF

NASCIDO EM 21.5.1829
FALECIDO EM 12.1.1901

ANNA MARIA LEITTERSTORF
NASCIDA SCHIMITT

NASCIDA EM 22.6.1837
FALECIDA EM 15.7.1911

ELES GOSTARIAM DE DESCANSAR EM PAZ!



E à direita:

AQUI DESCANSA EM PAZ

JULIUS LEITTERSTORF
NASCIDO GALLI

NASCIDO EM 25.2.1859
FALECIDO EM 20.4.1914.



Agradeço a valiosa colaboração do prof. Dr. Arnaldo Walter Doberstein, da srta. Miriam Ney Ostermann, da profa. Maria Eunice Müller Kautzmann, e do prof. Osmar Arend.

O Primeiro Post a gente nunca esquece



Terra de alemães da quinta geração, alles blau.